Com consequências ainda relativamente misteriosas, o cigarro eletrônico é, desde seu surgimento, promovido como uma alternativa menos prejudicial à saúde em comparação ao cigarro convencional. Nos últimos anos, porém, uma série de descobertas e fatalidades têm colocado o item no radar de médicos e cientistas como uma grande ameaça – que pode, inclusive, superar a do cigarro convencional.
Cigarro eletrônico: como funciona
Na rua, em festas e até em estabelecimentos fechados, não é raro encontrar pessoas fumando pequenos dispositivos eletrônicos e soltando, na sequência, uma fumaça bem densa de odor adocicado. Conhecido como cigarro eletrônico ou “vape”, este item conquistou um número esmagador de adeptos nos últimos anos – e, usado especialmente por adolescentes e jovens adultos, ele tem apelo na forma como funciona.
Categorizados no Brasil como DEFs (Dispositivos Eletrônicos para Fumar), os cigarros eletrônicos contêm, segundo o CDC (Centro de Controle e Prevenção de Doenças, nos Estados Unidos), nicotina somada a outros componentes químicos e fragrâncias em um líquido. Quando acionados, eles contam com uma bateria que aquece este líquido, o transformando em um aerossol que é então inalado e exalado pelo usuário.
Por não conter monóxido de carbono (responsável pela sensação sufocante criada pela fumaça do cigarro convencional) e por emitir uma fumaça “cheirosa” cujo odor se dissipa com facilidade, o “vape” é visto como inofensivo. Sendo assim, ele pode, até o momento, ser usado em locais fechados, e a ideia de que seu produto não passa de “vapor d’água” convence tanto jovens quanto seus responsáveis.
Enquanto alguns destes dispositivos são descartáveis, contendo uma quantidade determinada de fluido que não pode ser reposta, outros são recarregáveis e, portanto, reutilizáveis. Com isso, há ainda quem recarregue o cigarro eletrônico com tetrahidrocanabidiol que, também conhecido pela sigla THC, é uma substância psicoativa da Cannabis sativa responsável pelo efeito “sedativo” de fumar maconha.
“Vape” faz mal? O que a ciência já sabe sobre isso
Apesar de já estarem, em formatos mais simples, disponíveis no mercado há muitos anos, os cigarros eletrônicos ganharam uma onda substancial de usuários mais recentemente. Sendo assim, o item ainda está sendo estudado, mas os quase 3 mil casos de quadros de saúde relacionados ao “vape” registrados pelo CDC desde 2019 mostram que o dispositivo está longe de ser inofensivo.
De acordo com Diego Ramos, pneumologista da Medicina Interna Personalizada (MIP), estes itens são responsáveis pela chamada EVALI (E-cigarette or Vaping product use-Associated Lung Injury), sigla que designa uma lesão pulmonar associada ao uso de dispositivos.
Diagnosticada pela primeira vez em 2019, a doença se manifesta em sintomas que vão de tosse, dor no peito e falta de ar até problemas gástricos e febre. O quadro, segundo estudos, pode evoluir ainda para fibrose pulmonar, pneumonia e insuficiência respiratória.
Em geral, estudos sobre a EVALI revelaram que a maior parte dos pacientes se recupera ao cessar o uso do cigarro eletrônico e receber auxílio médico. Dados do CDC apontam, porém, que, até fevereiro de 2020, 2.807 pessoas foram hospitalizadas ou morreram devido ao quadro nos Estados Unidos – e, cinco meses antes, o órgão apontava apenas cerca de 200 casos.
Além disso, Ramos afirma ainda que o hábito de fumar o cigarro eletrônico atua no descontrole de doenças pulmonares pré-existentes, além de estar ligado ao surgimento de tumores ou doenças cardiovasculares a longo prazo – e, ainda que não se saiba exatamente quais substâncias ou mecanismos estão ligados a todas estas possíveis complicações, estudos e especialistas já têm teorias.
De acordo com uma revisão literária publicada em 2020 no periódico “Journal of Medical Toxicology”, umectantes presentes no dispositivo são, quando aquecidos, capazes de gerar substâncias irritantes aos pulmões e compostos já descritos como cancerígenos, como formaldeído. Além disso, metais presentes no próprio recipiente podem ser liberados durante o uso do “vape”, enquanto certas fragrâncias e diluidores seguros para ingestão, não são necessariamente seguros para a inalação.
Somado aos riscos causados pelas substâncias do cigarro eletrônico, a SBPT ( Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia) frisa também o risco de explosão do dispositivo.
Cigarro eletrônico é pior que cigarro normal?
Ao contrário do cigarro convencional, que já é estudado há décadas e, em todo o mundo, foi submetido à análise de órgãos reguladores, o “vape” ainda está passando por este processo. No Brasil, por exemplo, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), começou recentemente a receber evidências científicas e demais informações para avaliar possíveis restrições à venda e ao uso do dispositivo – mas, apesar de os estudos ainda serem iniciais, há provas suficientes de que o cigarro eletrônico pode ser uma ameaça ainda maior que o convencional.
Segundo especialistas e autoridades em saúde, o perigo maior do “vape” está justamente no apelo que ele tem para jovens, no quão misteriosos ainda são seus efeitos a longo prazo e na falta de regulação. Segundo Ramos, a constante intensificação no uso do dispositivo por jovens implica na futura descoberta de ainda outros efeitos além dos já identificados, enquanto a SBPT frisa o risco da aparente “inocência” dele.
“Os DEFs são uma ameaça à saúde pública porque representam uma combinação de riscos: os já conhecidos efeitos danosos à saúde e o aumento progressivo do seu uso no país. Em especial, esses dispositivos atraem pessoas que nunca fumaram, persuadidas pelos aromas agradáveis, sabores variados, ‘inovação tecnológica’ e estigmas de liberdade”, afirma um comunicado recente do órgão, emitido em um apelo à Anvisa pela proibição do item.
Na mesma nota, a instituição afirma ainda que “a ampla utilização dos DEFs pode reverter, em pouco tempo, o sucesso das políticas de controle do tabaco obtido em décadas de esforços do Programa Nacional de Controle do Tabagismo (PNCT)”, levando em consideração que, devido ao apelo e o conforto físico do uso do item serem maiores em comparação ao do cigarro convencional (bem como a não proibição até em locais fechados), os usuários tendem a fumar com mais frequência.