Ao longo dos anos 90 e 2000, estudos elaborados por neurocientistas tomaram a mídia ao afirmar que, no cérebro, haveria o que se chamou popularmente na época de “ponto de Deus”. Ele estaria localizado no lobo temporal (estrutura localizada bilateralmente na região das têmporas) e seria uma porção do órgão responsável por processar a fé. Ativada sob estímulos relacionados à religião, era especulado até que esta área ofereceria certa “ligação” com o divino.
“Ponto de Deus” no cérebro: o que se sabe
Na época, o frenesi da mídia acerca do tema se deu pelo fato de que a teoria era apoiada por alguns estudos, sendo um deles a observação e avaliação de pacientes com epilepsia originada na região onde estaria localizado o “ ponto de Deus”. Publicada na década de 90, a pesquisa avaliou a condutividade elétrica da pele das mãos esquerdas destas pessoas (através do suor nas palmas, indicador direto de excitação e indireto de ativação do lobo temporal).
No estudo, os voluntários ouviram uma série de palavras de contextos neutros, sexuais, violentos e religiosos. Enquanto pessoas sem religiosidade aflorada demonstraram reações expressivas apenas às palavras de cunho sexual, os pacientes com epilepsia no lobo temporal (que frequentemente são pessoas muito religiosas) apresentaram reações de excitação desproporcionais, indicando, portanto, maior atividade neste ponto do cérebro.
Ainda nesta década, outro estudo famoso utilizou um equipamento apelidado como “Capacete Divino” em voluntários. Desenvolvido pelos neurocientistas Stanley Koren e Michael Persinger, o dispositivo usa uma rede de sinais magnéticos de baixa intensidade para estimular o lobo temporal – e, nos testes do item com mais de 2 mil pessoas, 80% delas relataram a sensação de uma presença descrita como “espiritual” ou “divina” até pelos não religiosos.
Por serem baseados em amostras muito pequenas e na observação de experiências pessoais, estudos como estes levantam mais hipóteses do que conclusões – e, por isso, a existência ou não de um ponto no cérebro voltado para a religião ou até capaz de se “conectar” com algo maior seguiu sendo um tópico cuidadosamente estudado pela comunidade científica. Com isso, nas décadas seguintes, a noção deste ponto específico passou a se transformar.
Nos anos 2010, por exemplo, um estudo elaborado por pesquisadores da Universidade do Missouri, nos Estados Unidos, observou que o processamento da fé no cérebro poderia ir além de uma única região. Esta hipótese foi elaborada após cientistas questionarem um grupo de pessoas sobre assuntos religiosos (como sensação de proximidade com “algo maior”) e notarem uma relação entre a participação acentuada delas em práticas religiosas e uma atividade aumentada em não uma, mas diversas áreas do cérebro.
Isso, inclusive, tem respaldo no fato de que, com o passar dos anos, a ciência descobriu que nenhuma função do organismo (como andar e falar) tem uma área designada exclusivamente para si como se imaginava. “O cérebro não é um monte de caixinhas com funções. Abriu essa caixinha, faz isso, abriu outra, faz aquilo”, afirma a neurocirurgiã Tatiana Vilasboas, do Hospital San Gennaro, em São Paulo. A forma como o cérebro funciona, de acordo com a médica, é muito mais complexa do que isso.
Para exemplificar esta complexidade, ela conta como o cérebro controla os movimentos do corpo. “O neurônio motor superior fica no giro pré-central, então você consegue delimitar. Agora, onde é que você mexe? É só no neurônio motor? Não! Tem a área motora acessória, que vai modular, dar a intenção do movimento. Você tem o cerebelo, que regula a profundidade do seu movimento, se é um movimento ‘fino’, de pinça, ou brusco como o caminhar. Então o neurônio que faz mexer está lá no giro motor, mas, para ele mexer certo, você precisa de uma conexão ao redor dele”, afirma.
De acordo com a médica, apesar de muitos na comunidade científica não aceitarem a ideia de o cérebro processar a fé e a espiritualidade de forma diferenciada, a hipótese mais aceita hoje é a de que existiria um “circuito” (ou seja, um conjunto de estruturas) responsável por fazer isso, e não apenas um ponto.
Cérebro teria “circuito de Deus”, e “Deus” também interfere no cérebro
Além de ter como base estudos como o dos anos 2010 e também o entendimento maior do órgão de forma geral, como explicado por Tatiana, esta ideia tem ainda ligação com evidências científicas dos efeitos da espiritualidade. Assim como parece haver um circuito ativado pela fé no cérebro, a neurocirurgiã afirma que estudos sugerem também efeitos positivos dela sobre ele em termos de saúde mental e física.
Conforme explica a médica, uma ideia relativamente plausível é a de que a espiritualidade – seja ela ligada a uma religião ou a crenças diferenciadas – pode mudar a forma como certas situações são “absorvidas” pela mente, bem como a reação que elas geram no corpo – e, para entender isso, é preciso primeiramente compreender o “caminho” que uma informação faz desde seu processamento até a resposta do cérebro ao estímulo.
Fé pode mudar a via usada pelo cérebro para interpretar informações
“Você vê uma coisa, enxerga com os olhos. O impulso passa pelo nervo óptico e chega até uma parte posterior do cérebro. Essa região interpreta a imagem – então, neste estágio, você apenas viu. Quando isso acontece, seu cérebro vai, de maneira inconsciente, escolher uma via para mandar este estímulo”, afirma.
Estas vias, chamadas de IFOF (fascículo inferior fronto occipital), ILF (fascículo longitudinal inferior) e fascículo uncinado, têm a função de ligar a parte de trás do cérebro à região frontal, e a diferença entre elas está no teor das informações que cada uma delas prioriza. Como o IFOF é milissegundos mais rápido que as outras vias, ele é responsável por informações prioritárias.
“É uma via rápida, quente. Tudo o que é importante para o cérebro, como amor, ódio, sobrevivência, vai através dele”, explica ela, lembrando que, por ser um processo involuntário, às vezes ele não faz muito sentido. Quando uma pessoa ouve dizer que alguém com o mesmo nome de um ente querido dela sofreu um acidente, por exemplo, é possível que ela manifeste taquicardia e outras sensações de pânico mesmo sabendo que não haveria possibilidade disso acontecer.
Enquanto isso, informações mais banais, como a interpretação do cérebro sobre a visão de objetos comuns (cadeira, mesa, garrafa, cama, etc) usam as vias mais lentas – ILF e fascículo uncinado – para “transitar” pelo cérebro. Por serem informações corriqueiras e utilizarem vias, elas não geram, portanto, reações mais urgentes – e há formas, segundo a médica, de inverter a via pela qual certos assuntos são processados, sendo a espiritualidade uma delas.
“Quando você aprende a dominar seus sentimentos, dominar suas ansiedades, seu corpo, a tomar consciência e as rédeas da sua vida, você começa a fazer com que algumas coisas mudem de via. Você vai ‘treinando’ seu cérebro para que uma coisa que te trazia muita ansiedade antes não te deixe tão ansioso. E isso você consegue através de meditação, reza, psicoterapia”, afirma ela, ressaltando que momentos de introspecção, oração e autoconhecimento são processados de forma tranquila.
“Nessas situações, você tende a usar uma via mais tranquila do cérebro. Pessoas que acreditam em Deus, por exemplo, acreditam que não estão sozinhas, que ele está presente. Só isso já é muito reconfortante, e ‘treina’ o cérebro para processar certas questões por outra via”, afirma, ressaltando que há inúmeros estudos científicos com diferentes métodos e amostragens apoiando esta hipótese.
“Exames mostraram que quando a pessoa medita, ora, se acalma, ilumina os pensamentos, ela reduz a amplitude de compra no cérebro – ou seja: acalma a atividade elétrica – e ativa locais ligados à recompensa, ao prazer. É possível até reduzir batimentos cardíacos, os níveis de hormônios como cortisol e adrenalina e aumentar a produção de endorfinas”, afirma ela, se referindo a análises sobre exames de eletroencefalograma e ressonâncias magnéticas.
Além disso, ela cita também estudos baseados na relação entre a recuperação de pacientes em estado grave e a fé. “Passaram a separar grupos, por exemplo, dentro de uma UTI: pessoas que professavam alguma fé, uma crença em algo superior e grupos que não professam. Nisso, começaram a aparecer diversos resultados que apontam que pessoas que acreditam em algo têm uma evolução melhor”, conta Tatiana.
A fé como motivação
Outra questão que corrobora com a ideia de efeitos muito positivos da fé no cérebro, segundo a neurocirurgiã, é a dos estudos sobre as necessidades básicas do ser humano. Conforme explica, na década de 50, o psicólogo norte-americano Abraham Maslow propôs um modelo em pirâmide no qual a base concentra necessidades fisiológicas (como comida e abrigo) enquanto o topo concentra realizações pessoais passando, no caminho da base ao pico, por necessidades como segurança, amor e intimidade.
Em tese, alguém que tem todas estas necessidades supridas ao longo da vida é feliz, mas, na prática, foram observadas divergências quanto a esta noção. Isso porque, muitas vezes, mesmo quem tem uma boa moradia, um bom emprego, garantia financeira e uma família amorosa construída sofre de problemas psicológicos como depressão e, em alguns casos, não sente vontade de continuar vivendo. Ao mesmo tempo, a observação da situação contrária também trouxe surpresas.
“Constatou-se que, em zonas de conflito, onde você não tem a estrutura básica mínima para a sobrevivência, o índice de depressão, de tentativas de suicídio, era muito menor. Então levantou-se a questão: como é que a pessoa está lá em uma zona de guerra, perdeu o pai, a mãe, a casa foi bombardeada, perdeu a liberdade, enfim, está em uma situação muito difícil, como estes índices são menores?”, questiona a médica, explicando algumas hipóteses que foram propostas.
“A diferença entre as pessoas que atingiam esse ponto que eram realmente felizes das pessoas que estavam insatisfeitas é a ideia do propósito de vida. Nesse ponto, está a fé. Falar: ‘Estou aqui para evoluir meu espírito’, ‘estou aqui para ajudar o próximo’, ‘estou aqui para fazer mais’. Você ter uma missão de vida mesmo, um propósito – e, dentro desse propósito, muitas vezes a religiosidade está, sim, ligada à obtenção de satisfação nesse sentido”, conta Tatiana.
É importante lembrar, porém, que nada disso está ligado a apenas uma religião, mas sim à conexão da pessoa com algo em que ela acredita ser “superior”. “Fé significa acreditar. Acreditar em algo maior, em um propósito. Às vezes, a pessoa acredita na natureza, na força do universo. Tem inclusive um estudo que mostra que, quando você tem contato com a natureza e fica descalço no solo, funciona como um fio-terra: você diminui a atividade elétrica do cérebro, melhora a respiração e diminui a temperatura corporal. Por isso a gente fala de espiritualidade, não de uma religião em si”, afirma.
Apesar das correlações, confirmação ainda requer mais evidências
Mesmo havendo estudos, Tatiana lembra que, assim como as primeiras análises sobre o tema, eles são bastante baseados em relatos de experiências pessoais e hipóteses. Desta forma, apesar de toda a evolução, o tema segue não sendo um consenso na comunidade científica. “Você consegue medir em termos estatísticos, mas não tem como provar”, afirma, ressaltando que, ao mesmo tempo, a inexistência de todos estes fatores também não é algo comprovado.
Não há, no entanto, contraindicações para o uso da espiritualidade como um instrumento de bem-estar, desde que isso não inclua práticas que prejudiquem a saúde ou neguem o que a área médica de fato já provou. “Para mim, o importante é: se você faz isso e melhora, não vejo por que não fazer”, conclui.