Além das alergias mais comuns, como a pó, alimentos e pelos, há também processos alérgicos raros que podem parecer até um pouco estranhos para quem nunca ouviu falar deles. É o caso, por exemplo, de quem sofre de urticária aquagênica, doença rara e incurável que é mais conhecida como alergia à água.
Mesmo com tratamentos disponíveis, muitos portadores de alergias mais frequentes (como a picadas de mosquito ou a ácaros, por exemplo) costumam sofrer bastante com a resposta do organismo aos alérgenos. Sendo assim, é de se imaginar que ter alergia a algo abundante no próprio corpo humano e presente no dia a dia de todos é especialmente desafiador – e é o caso de quem convive com a esta condição.
Alergia à água (urticária aquagênica): como é viver com o problema
De acordo com a dermatologista Simone Veloso, membro da Sociedade Brasileira de Dermatologia e da American Academy of Dermatology, a urticária aquagênica foi registrada pela primeira vez na literatura médica em 1964, e consiste em um tipo raro de lesão causadas pelo contato com a água, sem que isso tenha a ver com a temperatura do líquido (a alergia ao frio, incluindo líquidos gelados, também existe, mas se trata de outra condição).
Durante a reação, é comum ter coceira, lesões vermelhas e inchadas e dor, e os sintomas podem ocorrer diante do contato tanto com fontes “externas” de água – como chuva, chuveiro ou mar, por exemplo – quanto com fontes “internas” – caso de suor, lágrimas e até urina. O uso de produtos à base de água, tais como cremes e maquiagem, também pode desencadear a reação.
Conforme explica a dermatologista, este problema é mais comum em mulheres, surgindo especialmente durante a puberdade.
A youtuber Niah Selway é uma das pessoas que sofrem com este tipo raro de alergia e se tornou conhecida por documentar seu dia a dia e dificuldades no canal que mantém há anos no YouTube. Conhecida especialmente por ser portadora de prurido aquagênico (versão da alergia em que não há lesões visíveis durante as reações alérgicas), Niah já fez inúmeros vídeos sobre a convivência com o problema, deixando claro que a água está mais presente no dia a dia das pessoas do que elas imaginam, e praticamente todos os aspectos da vida são afetados pelos problemas. “Há muitos dias em que eu perco horas para a dor”, diz.
Como tomar banho?
Em um de seus vídeos mais populares sobre a alergia à água, Niah mostra o que acontece quando ela toma banho – e o desconforto da youtuber é aparente. Após alguns minutos em contato com a água, ela relata dor, coceira, e após cada banho, ela precisa usar roupas largas e se deitar para não piorar a reação (que, geralmente, permanece ativa durante horas).
“Tomar banho diariamente, banho de banheira… Machuca. Me deixa com tanta dor que meu dia não pode começar até que eu me recupere da minha reação alérgica”, afirmou ela em outro vídeo. Em geral, ela relata tomar banhos “de verdade” apenas duas vezes por semana e fazer limpeza com panos umedecidos nos outros dias (algo que também desencadeia a reação, mas mais curta).
Além disso, ela também usa sabonetes indicados para peles sensíveis, com ingredientes medicinais como melissa, aloe vera e centelha asiática, e teve de trocar os hidratantes corporais comuns – que são à base de água – por produtos feitos com óleos ou outro tipo de emoliente. Antes disso, ao sair do banho e hidratar a pele com loções comuns, ela acabava prolongando o tempo da dolorosa reação.
Para diminuir o sofrimento relacionado ao banho, a blogueira limita o tempo que passa nele, lavando os cabelos separadamente e depilando as pernas com aparelhos depilatórios. Segundo ela, isso não faz as reações alérgicas serem menos intensas, mas alivia a ansiedade de pensar em passar muito tempo em contato com a água para fazer tudo isso no banho.
Fazer xixi
Ainda que muitas pessoas não imaginem que isso possa acontecer, a alergia de Niah é desencadeada até quando ela precisa urinar – e isso a fez se demitir do trabalho. Segundo ela, é inviável passar o dia todo em um escritório sendo que, a cada vez que ela precisa usar o banheiro, passa de quarenta minutos a uma hora com dores nas coxas, no bumbum e nas costas devido à alergia.
Para amenizar a situação, ela sempre coloca papel higiênico dentro do vaso antes de fazer xixi, visando diminuir os possíveis respingos, e usa protetores para o assento, evitando sentar-se em um local molhado. Após praticamente todas as vezes em que vai ao banheiro, ela precisa deitar-se e esperar que a reação alivie, já que continuar se movendo normalmente irrita a pele mais ainda.
Exercícios físicos
Conforme relatou em vídeos, Niah costumava ir à academia, mas teve de parar conforme a alergia piorou, já que o próprio suor desencadeia a reação. Atualmente, ela se priva de grandes esforços e faz apenas ioga e caminhada, sempre tomando todos os cuidados para evitar o calor excessivo e, consequentemente, o suor. Às vezes, porém, até andando devagar, ela tem reações na rua.
Dá para beber água?
Como a reação é restrita à pele, as mucosas da boca e do trato digestivo não são afetadas conforme o paciente ingere líquidos e, portanto, é perfeitamente possível beber água.
Dias de chuva
Em geral, Niah afirma que sai pouco de casa – e nos dias em que há chuva, ela só sai se for absolutamente necessário. “Eu não vou a lugar nenhum em dias chuvosos, fico dentro de casa. Levando um guarda-chuva ou não, levando um traje à prova d’água ou não, não há nenhuma forma, é impossível, para mim, sair de casa quando está chovendo muito e não deixar sequer um pingo cair na pele”, disse ela em um vídeo.
Ao descrever como se sente ao sair de casa em dias chuvosos, ela afirmou que, para ela, parece que ácido está caindo do céu.
Usar maquiagem
Niah é uma youtuber de beleza e amante de maquiagem, mas quase deixou de usar os produtos quando a alergia finalmente começou a afetar seu rosto. Após uma pesquisa, porém, o médico dermatologista que a atende encontrou um spray à base de óleo que ela passa no corpo inteiro, inclusive no rosto, antes de fazer qualquer coisa.
Segundo ela, o produto cria uma camada sobre a pele que permite o uso de produtos à base de água (como bases e corretivos), mas não é o suficiente para impedir a reação durante o banho.
Dormir
Para Niah e outras pessoas portadoras da alergia à água, até dormir pode ser desafiador. Isso porque, caso o corpo fique muito quente durante a noite, é possível que uma fina camada de suor se forme na pele, e isso basta para que a reação alérgica comece. Segundo a youtuber, ela é frequentemente acordada de madrugada com bastante dor devido a esta questão.
Diagnóstico e sintomas
O diagnóstico deste tipo de alergia é clínico e se baseia em um teste simples. “O teste consiste na aplicação de tecido umedecido com água em temperatura ambiente por vinte minutos na pele. Se a urticária aparece após este período, o teste é considerado positivo”, afirma a dermatologista Simone, descrevendo o que exatamente acontece durante a reação desencadeada pela água.
Assim como tipos de urticárias causadas por outros alérgenos, a lesão gerada no contato com a água em quem tem a urticária aquagênica tem coloração avermelhada, incha e provoca coceira. “As lesões cutâneas e a coceira intensa se desenvolvem dentro de vinte a trinta minutos, e desaparecem dentro de trinta a sessenta minutos após a secagem”, explica a médica.
No caso de Niah, há também bastante dor, e em um vídeo sobre o problema ela mostrou que, apesar de não apresentar lesões como as descritas pela dermatologista, ao observar a pele em um microscópio antes e depois de um banho, é possível observar a irritação e a mudança que acontece nela conforme há contato com a água.
Conforme afirma em seus vídeos, os sintomas costumam durar de uma a três horas, dependendo do que ela faz quando eles começam a aparecer. Além disso, ela tenta não coçar, mas às vezes a coceira se torna tão insuportável que seus membros começam a ter espasmos – algo retratado por ela em uma postagem no Instagram:
https://www.instagram.com/p/B9EbP3ah-Fl/
Causas
Por ser bastante rara e pouco documentada, não há um consenso sobre por que algumas pessoas têm alergia a algo que compõe boa parte do próprio corpo, mas, segundo Simone, há uma série de hipóteses. A primeira, segundo ela, surgiu nos anos 60, e propõe que a interação entre a água e as glândulas sebáceas provocaria o rompimento de células que contêm histamina – substância envolvida nos processos alérgicos.
Já nos anos 80, outra hipótese supôs que a causa teria relação com a difusão da água por parte das células da pele, que geraria uma mudança na pressão sobre elas e, por consequência, a urticária. Mais recentemente, outra suposição é a de que algumas pessoas teriam antígenos (corpos estranhos que desencadeiam as defesas do corpo) na pele, que se dissolveriam na água, entrariam pelas células e desencadeariam a alergia.
Conforme documentado pelo Centro de Informações sobre Doenças Genéticas e Raras (o GARD, órgão do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos), há também um fator genético, já que boa parte dos pacientes têm histórico da alergia à água na família.
Tratamento
Uma vez que a causa da alergia à água não é completamente conhecida, não há cura para a doença e os tratamentos são escassos, mas é, sim, possível amenizar os sintomas. “O dermatologista pode aconselhar o uso de algumas técnicas, como a exposição a raios ultravioleta ou ingestão de anti-histamínicos para aliviar o desconforto”, afirma ela, se referindo a medicamentos antialérgicos.
Já segundo o órgão norte-americano, há também a possibilidade de se usar cremes ou outros agentes de uso tópico que criam uma barreira sobre a pele e impedem que a água entre em contato com ela. “Eles podem ser usados antes do banho ou outras exposições à água para prevenir a penetração dela na pele”, afirmam os registros sobre a doença no site da instituição.
Para Niah, porém, poucas coisas funcionaram. Conforme relatou em um vídeo, ela tentou diversos tipos de antialérgicos durante anos e nenhum apresentou qualquer efeito sobre as reações, bem como medicamentos analgésicos testados por ela durante crises. Alguns produtos à base de canabidiol – substância extraída da planta da maconha – como óleos e cremes se mostraram, segundo ela, um pouco efetivos contra a dor.
Além disso, ela também usa um gel de aloe vera que não possui água na composição para aliviar a sensação de ardência causada pela alergia à água e, apesar de o produto não sanar o problema, ele promove conforto após o banho.