O fim do vício > Entrevista com a chefe do setor de Tabagismo da Santa Casa

Cigarro x Mulher

Analice Gigliotti é psiquiatra, especialista em tratamentos de tabagismo e chefia o Setor de Tabagismo da Santa Casa do Rio de Janeiro.

BM – Por que o cigarro é pior para as mulheres ?

AG – Uma coisa que é importante você ressaltar nessa questão das mulheres fumantes, é que muitas vezes as mulheres tomam hormônio, usam pílula anticoncepcional ou estão fazendo uma reposição hormonal na menopausa. O cigarro, seja pelo monóxido de carbono, seja pela nicotina, aumenta os riscos de doenças cardiovasculares: infarto, acidente vascular cerebral, gangrena. E a pílula anticoncepcional, ou qualquer tipo de hormônio, via externa, aumenta mais ainda os riscos dessas doenças. Seria mais um fator de risco. Quando você diz assim: “o cigarro causa infarto”, ele não é a única causa do infarto. Pode ser o único fator causal em um único indivíduo, mas existem várias outras coisas que podem causar infarto. Por isso que quando uma pessoa diz: “meu pai infartou e nunca fumou”. Ele pode ter infartado por ter história familiar, estresse elevado, obesidade, hipertensão arterial. Todos esses são fatores de risco. O cigarro é mais um desses fatores. Se a pessoa tem mais de um fator de risco, nós chamamos de fumante de alto risco. É um fumante que tem um risco mais elevado de doenças do que um fumante comum. Essa é uma questão. A outra questão nas mulheres que é importante para elas se conscientizarem, é a gestação. Mulher, regra geral, tem vontade de ter filho. Então uma mulher não deve fumar seja porque ela não está tomando pílula porque quer engravidar. Porque fumar aumenta os riscos de uma gestação problemática, de aborto espontâneo, de nascimento de bebê de baixo peso, de diminuição do QI da criança. Ela é que está com riscos. Seja porque quer ter filhos, ou por não querer, não se deve fumar. Por outro lado a mulher que é mãe também não deve fumar. Tradicionalmente, principalmente na nossa cultura, as mulheres é que levantam mais o peso dos filhos, mais do que os homens. A maior parte das vezes a criança tem muito mais contato com a mãe do que com o pai. Regra geral a mãe é que fica mais tempo com o filho. Uma mulher fumando, numa casa com criança, aumenta o risco dessa criança ter infecções respiratórias, asma, bronquite, sinusite, resfriados, gripes, amigdalite, entre outras infecções respiratórias. O cigarro atua diretamente nos nossos cílios. Nós temos cílios em toda cavidade respiratória. Eles são responsáveis pela expulsão das secreções dos nossos brônquios e seios nasais, impedindo que a gente tenha infecções nesses locais. O cigarro paralisa esses cílios e quando isso ocorre, facilita o desenvolvimento de infecções respiratórias. É por isso que fumante tem mais infecções respiratórias do que o não fumante. A mãe também serve de mau exemplo. A cada dia que passa temos mais evidências de que fumar é uma doença hereditariamente transmissível. Você ser fumante, aumenta o risco do seu filho ser fumante. Por uma questão absolutamente genética. Por outro lado se você é uma mãe que fuma, você vai diminuir, por contração dos vasos da placenta, a oxigenação do seu filho e chega nicotina no cérebro do neném. Então ele nasce já dependente químico e pode muitas vezes entrar em síndrome de abstinência da nicotina. Ele sente falta da nicotina, porque foi alimentado dessa substância o tempo todo da sua formação. Então o organismo dele também é acostumado com a nicotina. Essa síndrome pode trazer irritação, ansiedade, inquietação, por pura falta de droga. Ele já nasce um dependente de droga.

BM – Você já fumou ?

AG – Já. Eu parei de fumar há dez anos atrás.

BM – Quantos anos você tem ?

AG – Estou com 36.

BM – Quanto tempo você fumou ?

AG – Quinze anos. Eu comecei a fumar com onze anos. E quanto mais precoce é o início do tabagismo, mais difícil é deixar de fumar. Porque o cérebro ainda está em formação e é mais complicado você retirar os receptores cerebrais de nicotina, deles adormecerem, desaparecerem. Até hoje eu tenho vontade de fumar. É uma coisa muito maluca, porque eu parei de fumar há 10 anos, trabalho com isso, não teria o menor sentido eu ter vontade de fumar, sei que faz mal, sei todas as explicações possíveis para não fumar. A dependência de nicotina é um processo poderoso, eu diria avassalador. Mesmo assim outro dia eu senti muita vontade de fumar, quando eu peguei no maço de cigarro de um cliente meu, aqui dentro do consultório e cheirei os cigarros. Não foi saudadinha, foi vontade de fumar mesmo. Esse tempo da vontade de fumar, geralmente cinco minutos, é tão maior quanto mais vulnerável você está psiquicamente. Se eu tô deprimida por exemplo, fico mais vulnerável. Normalmente as situações que desencadeiam o desejo de fumar, depois que você para de fumar, são situações que o cigarro exercia um papel muito importante na vida daquele indivíduo. São situações individuais e muito particulares. Para cada um é de um jeito.

BM – Como é o trabalho do psiquiatra no tratamento para parar de fumar ?

AG – Psiquiatra trata de gente que tem transtorno de comportamento. O tabagismo é uma dependência de droga e muitas vezes, digamos que 40% dos tabagistas que procuram auxílio para parar de fumar, têm algum outro problema na esfera psiquiátrica. Ou eles são alcoolistas, ou já foram, ou são deprimidos, ou já tiveram depressão, ou tem transtorno de ansiedade, ou tem fobia social, doença de pânico etc. As mais comuns são alcoolismo e depressão. Enquanto psiquiatra o que a gente tem que fazer é rastrear para ver se essa pessoa tem muita dificuldade de parar de fumar por causa disso. E se tiver a gente vai ter que prestar mais atenção nessas condições. Por exemplo, eu tenho um paciente, que é alcoolista e deprimido e não estava conseguindo parar de fumar. Ele não quer parar de beber agora, mas a gente tem que prestar muita atenção na questão de depressão dele. Se ele parar de fumar, ele pode ficar muito deprimido e voltar a fumar. A nicotina é uma droga estimulante do sistema nervoso central. Se você tira essa droga estimulante, ele tende a ficar mais deprimido ainda.

BM – Esse controle é feito com remédios ?

AG – No caso dele sim. Tem uma coisa boa, que existe um remédio para parar de fumar, que tem efeito antidepressivo, que é o Ziban. Eu normalmente nesses casos prescrevo o Ziban e ele segura bem a onda. Mas a gente tem que prestar atenção, caso o medicamento não seja suficiente há um acompanhamento.

BM – Você que teve a idéia de criar um setor de tratamento para dependência de nicotina na Santa Casa do Rio de Janeiro ?

AG – Eu fui convidada a desenvolver esse trabalho no setor de psiquiatria da Santa Casa. E agora eu fui convidada a chefiar o Setor de Dependência Química, que é maior e leva em conta o alcoolismo, e outras dependências de drogas. Durante algum tempo eu tratei só de nicotina na Santa Casa.

BM – Como é o tratamento para parar de fumar ?

AG – A primeira coisa que a gente faz é uma triagem. Nessa triagem a gente avalia se o paciente está motivado ou não, se ele tem algum outro transtorno psiquiátrico, se ele tem apoio social e se tem algum outro problema químico. Se esse paciente está motivado, e não tem nenhum problema psiquiátrico, vai direto para os grupos. A menos que ele tenha dificuldade de relacionamento em grupo. A gente encaminha para os grupos que têm uma primeira fase com cinco semanas, uma vez na semana. A fase um é para se obter a abstinência do cigarro. Nessa fase o paciente vai marcar uma data para parar de fumar e vai parar. Na segunda fase, só vão aqueles que pararam de fumar. Essa fase nós chamamos de prevenção de recaída. Essa fase dura uns dois meses e serve para evitar que o paciente volte a fumar. São abordagens diferentes. A primeira fase é mais estruturada, mais informações, palestras. Na segunda fase os pacientes se colocam mais, falam das dificuldades que eles têm em permanecer sem fumar. O medicamento só é indicado para pessoas que têm dificuldade de parar com o tratamento, os adesivos ou os chicletes. Ou pessoas que têm história pregressa de depressão ou são depressivas.

BM – Como é o trabalho para dar motivação ?

AG – Os pacientes que não são motivados passam a ter um acompanhamento individual, semanal. E a gente tenta, junto com o paciente, descobrir o que impede ele a parar de fumar. Se ele vai até lá é por que tem vontade de parar. Mas ele não pára. Então tem alguma coisa que faz com que ele não tenha vontade de parar. Então a gente trabalha esses dois lados de tal forma que a pessoa fortaleça esse lado de querer deixar de fumar e enfraqueça o que quer fumar. O que não é difícil, de uma forma geral, porque muitas pessoas mitificam esse momento. A gente focaliza as coisas que fazem com a pessoa continue fumando, a despeito dela achar que não deve fumar. Se você tem a oportunidade de falar sobre isso, você vai ver que o bicho não é tão horroroso. Quando a pessoa decidir parar de fumar vai para o grupo.

BM – Qual o perfil das pessoas fazem tratamento ?

AG – A grande maioria, cerca de 70%, de mulheres, senhoras (40 a 60 anos), cerca de 70% têm alguma doença relacionada a cigarro, seja enfisema, asma, diabetes. A grande maioria o médico já disse: “você devia parar de fumar”. Muitas têm histórias de depressão. A maioria é profissional de nível superior, classe média.

BM – Quais as maiores dificuldades em parar de fumar ?

AG – Conflito interpessoal e afeto negativo. Conflito interpessoal é assim: brigou com uma pessoa, acaba voltando a fumar. Afeto negativo é estar deprimido, ansioso, irritado. Essas são as situações mais comuns para recair. Álcool também.

BM – O que dificulta a parar de fumar ?

AG – Falta de apoio social, falta de prazer na vida, história de depressão e alcoolismo são as coisas que mais dificultam uma pessoa parar de fumar.

BM – Quais as reclamações de quem para de fumar ?

AG – 95% das pessoas acha mais fácil parar do que imaginava. Não é uma reclamação, mas sim uma questão: “quando eu vou parar de ter desejo de fumar?” Isso porque têm pessoas que carregam uma expectativa de quando pararem de fumar, milagrosamente não terão mais vontade de fumar. Não existe isso. O que é importante as pessoas saberem é que não importa se você tem ou não desejo, mas sim o que você vai fazer com ele.

BM – Quando o organismo pode se considerar limpo ?

AG – Não é bem esse o termo. Diz-se que, 10 a 15 anos é o tempo necessário para que você não tenha mais risco nenhum relacionado ao cigarro. O que demora mais a acabar é o risco do câncer de pulmão. Doença cardiovascular, na hora que você pára, já reduz muito o risco de ter. Risco de enfisema, envelhecimento precoce, pode durar seis meses a um ano. Mas o que custa a zerar é câncer de pulmão.

BM – Como o cigarro mexe com a estética ?

AG – O cigarro tem a ver com o envelhecimento precoce e esterilidade. A nicotina diminui a irrigação da pele e o monóxido de carbono diminui a oxigenação da pele. Quando a pessoa para de fumar ela fica com a pele mais viçosa. A cicatrização da fumante também é muito ruim. Por exemplo, cirurgião plástico costuma dizer que a pessoa tem que parar de fumar umas duas semanas antes da operação e não fumar pelo menos um mês depois. A cicatrização fica totalmente prejudicada, porque a pessoa não oxigena a cicatriz e fica com uma tendência maior a formar quelóides. Tem muita mulher que vem aqui para parar de fumar só porque quer fazer cirurgia plástica.

Analice Gigliotti – tel: 537-9005 ramal: 209